sexta-feira, janeiro 10, 2014

Incandescência



Naquela noite saí a caminhar. Queria ver as luzes incandescentes da cidade acolhedora. As ruas de paralelepípedo que formavam ao mesmo tempo uma textura desordenada e harmônica. Caladas e dormentes, eram acordadas vez ou outra por algum coche velho que passava desafinando. Respondiam em ruídos praguejantes de "Deixe-me dormir, por favor!". Os movimentos nessa hora da madrugada eram lentos e ensaiados. A calmaria era tanta que me fazia voltar pelo menos trinta anos no passado. A cidade estava relaxada. O calor abria as janelas das casas na madugada enquanto a cidade dormia. As luzes de que tanto gostava desenhavam formas na penumbra e faziam das sombras um lugar aconchegante. Do outro lado da rua, uma pequena pracinha de bairro me chamava a atenção. Me oferecia o que precisava: um banquinho de cimento colocado lá só pra mim. Pois atravessei a rua de paralelepípedos e soltei meu corpo cansado e feliz naquele banco curtindo a solidão da cidade dormente. Sentado na primeira fila daquele teatro real, notei que podia ver uma televisão ligada de relance dentro de alguma daquelas casas de janela aberta. Tentei em vão saber o que assistiam naquelas altas horas. Desisti de olhar passando apenas a ouvir a película enquanto encarava um gato de rua soturno de orelha em pé, atento, brincando com algum inseto. Ele se divertia e eu também. Da TV vinham diálogos típicos de alguma cena brega de romance. Um homem e uma mulher faziam juras sussurradas de amor. O filme acabou, desligaram a televisão e a janela fechou. O gato assustou-se e correu para trás de mim, onde havia um parquinho para crianças escondido nas sombras da noite. Haviam outras janelas abertas além daquela, outras vidas privadas, histórias escondidas em cada um daqueles recintos. O chão tremeu quando o trem passou a menos de cem metros dali. Um trem de carga, só podia. A alta madrugada não foi feita para pessoas como eu que nela escolheu viver, no silêncio, na paz e na solidão. O gato assustou-se outra vez. Pelo trem que passou ou talvez pelo meu olhar atravessado em sua direção, já não sei. Era hora de partir. Coloquei meu chapéu, apoiei-me na bengala amiga que carregava comigo já há alguns anos e parti sem rumo novamente em busca de outra praça, outros gatos, outras janelas. O sol ainda demoraria por chegar e ainda podia desfrutar das luzes incandescentes e de suas construções imaginárias nas sombras de minha vida.

Nenhum comentário: