domingo, setembro 20, 2020

Geometria da vida

Nascemos numa página em branco. Com o passar dos primeiros anos, aprendemos a nos reconhecer e reconhecer também àqueles que nos deram a vida e todos que estão ao nosso redor. De "papai" e "mamãe" passamos a construções de frases simples com muitos erros de concordância, de fonética, mas aos tropeços e com ajuda constante e diária vamos aprendendo e naturalizando nossa primeira e única língua materna. Aquele pontinho à lápis na página em branco vai se tornando cada vez mais forte até ser substituído por um ponto feito à tinta, eternizado, permanente em nossas vidas. Deste ponto, expressamos nossas ideias, sentimentos e deveres. Podemos nos comunicar não mais apenas com nossas cordas vocais mas com letras e alfabetos numa possibilidade quase infinita de combinações.
 
Aos poucos vamos conhecendo melhor o mundo à nossa volta. Descobrimos que não somos os únicos e que a tal Torre de Babel é real, confusa mas com seus devidos acessos.

O fato de ter nascido num país que se curvava ao imperialismo de outro maior e dominante, preenchia meu imaginário com a promessa de um mundo perfeito ao ver os filmes hollywoodianos que marcaram minha infância e de criar a imagem de ídolos pop endeusados, inatingíveis e perfeitos, fazendo meu toca-fitas gastar rolos e mais rolos magnéticos ao repetir freneticamente as mesmas músicas e os mesmos anseios. Eu precisava aprender o inglês. Naquele ponto de minha infância/adolescência aquela seria a porta de entrada para tornar aqueles sonhos e anseios mais reais e próximos. Sonhava com um intercâmbio nas terras de Walt Disney e assim a língua estrangeira me fisgou. 

Naquela minha página em branco, que já estava representada por um ponto à tinta verde-amarela, agora havia espaço para um outro, feito à lápis mas que a cada ano ia ficando mais forte ao ponto de pintá-lo de azul e vermelho. Entendia que mais que um sonho adolescente, o inglês era minha porta de entrada para um outro mundo de histórias, jogos e estudos, principalmente com o advento da Internet e suas infinitas possibilidades de conteúdos e aprendizados.

Foi então que nasceu a primeira reta em minha folha de vida, ligando estas duas realidades tão distintas, que fiz questão de apropriar-me.

Já em fase adulta, realizei a contragosto em relação ao destino, minha primeira viagem internacional. Para minha decepção ao descobrir que ia para um país de língua espanhola ao invés do tão sonhado inglês que a este ponto já era praticamente fluente. Tinha uma aversão ao espanhol não sei porquê. Mas era o que dava no momento e partimos, eu e um grande amigo para Buenos Aires. O ano era 2004. Fui carregado de preconceitos com a língua e com o povo e para minha minha surpresa dei com a cara na parede. Aquele país que era motivo de tantas piadas me recebeu de braços abertos e a língua, ah.. o espanhol... foi amor à primeira ouvida. Jamás olvidada! Enquanto passeava ficava de orelhas e antenas ligadas para não perder uma conversa paralela. Era música em meus ouvidos. Naquele momento, eu sabia que estava pintando mais um ponto na minha folha da vida. Um terceiro ponto para triangular com os outros dois. E não foi diferente. Depois daquela experiência única, retornei mais de uma dezena de vezes àquela cidade dos sonhos e depois fui ganhando coragem para desbravar outras em outros países, todos falando em espanhol.  Assim aquele terceiro ponto finalmente foi pintado de amarelo e vermelho e então o triângulo estava feito. Empresta dali, pega daqui e minha própria torre de Babel estava sendo construída dentro de mim.

Muitos anos se passaram, quando resolvi retomar minhas origens. Não minhas propriamente ditas, mas de meus avós italianos. Outra língua sem graça que não me despertava desejos.

Aos poucos fui traçando minha história até então desconhecida por mim. A cada detalhe descoberto, a cada novo nome em minha árvore genealógica, minha curiosidade pela Itália e pelo italiano foi crescendo pouco a pouco. Levei cerca de quatro anos em uma busca interminável até chegar ao ponto de ter que ir para a Itália finalizar um processo de reconhecimento de minha cidadania. Não imaginava um país como o que encontrei. Nem país, nem povo, nem língua. A oficial claro, porque ali se falam tantas e tantas outras, os dialetos regionais. Aos poucos fui entendendo o significado das palavras, entrei em uma escola de alfabetização para estrangeiros e de repente me via criança estudando e aprendendo uma língua falada e escrita por todos ao meu redor.  Pintei então mais um pontinho verde, branco e vermelho na minha folha da vida. Formava agora um quadrilátero, mas parecia mais um círculo, pois eu a esta altura tinha dado além da volta ao mundo, a volta à minha infância, com as mesmas dúvidas e anseios quando se está aprendendo a língua dos outros que convivem ao nosso redor.

Não precisava mais criar outras formas geométricas, tudo o que eu precisava estava ali, naquele círculo com seus infinitos pontos e possibilidades que sempre me levava e trazia ao mesmo ponto. O ponto do descobrir e do aprender e claro, o que seria da vida se o viver não fosse isso tudo? 






sábado, agosto 29, 2020

Amou

 Amou de menos

Pra ele tudo era pouco

Muito era a vida

Vida que investia ferozmente

Que abocanhava planos e desejos

Virando as páginas sem dar o tempo

De assimilar as velozes palavras 

Borrões de sentimentos


Amou demais

Quando amar de menos era pouco

Quando a vida enganava a morte

Em passos lentos, 

Frequência do viver

Ponteiros de um relógio

Marcando sempre o mesmo horário

Pulsando o sangue entre as veias

Num tic-tac persistente

Que lhe empurrava sempre à frente



Amou sem medo

Quando viu que o mundo era finito

Quando deixou de olhar o chão

E encarou o horizonte

E quis olhar o que tinha lá

Depois das corcovas da montanha

Aquele prêmio que não se alcança

Mas se persegue

Como o final de um arco-íris


Amou de perto

Quando quis que os corpos se confundissem

Quando quis respirar a vida alheia

E entregar o sopro de sua própria

Quando quis ludibriar as leis da física

Fazendo dois se tornar um


Amou de longe

Quando entendeu que o que importa

Quando não há posse nem espaço

Pra tanta ausência e relevância

Nem persistência tampouco esforço

Pra que aquela mesma frequência

Do tic-tac constante e etéreo

Ressoasse no universo

Do abrir ao fechar dos olhos

Um infinitésimo

Num infinito sentir